A notícia que Boechat não deu
Definitivamente não lidamos bem com a única certeza da vida. A morte repentina do jornalista Ricardo Boechat foi um duro golpe à rotina de todos que se familiarizaram com a voz do apresentador enquanto dirigiam a caminho do trabalho. Às 7:30h, salvo alguns atrasos e viagens, era sagrada a abertura do noticiário no radio, com o comentário bem articulado, por vezes controverso, sobre algum dilema do Brasil e de sua gente. Minutos depois ele nos fazia ir às gargalhadas quando anunciava José Simão e debochavam da miséria política, dos nomes inusitados e de fatos cotidianos, típicos do brasileiro. Ah… como foi bom… como vai fazer falta!! Simão com outro apresentador não será a mesma dobradinha, a mesma química. A morte súbita é a notícia que Boechat não deu e que nos tirou a fome na segunda-feira, depois de uma sequência de más noticias no ano conturbado. É um soco no estômago de quem fica e um alerta para a reflexão: porque nunca estamos preparados para essa notícia?
Recentemente passei um período de férias visitando a família no interior de Minas Gerais. Viver no interior é conviver de perto com a perda de gente querida. Todos se conhecem, se vêem na missa de domingo, sabem o nome do pai, dos filhos, netos…. sabem até o cardápio do almoço, já que dispensam convite para chegar e sentar à mesa. Cada vez que visito a cidade, me chama atenção uma música suave no autofalante da igreja matriz, que interrompe qualquer atividade. Todos param para ouvir. O padre anuncia solenemente um óbito e convida para o velório. Como a música tocou nos dias em que eu estava lá! Eu sempre perguntava: “mãe, quem foi dessa vez? E lá ia ela lamentar mais uma perda. No dia seguinte seguia o cortejo fúnebre até a proximidade de casa. A vida ia passando, quase todos os dias, pelo autofalante da igreja, e essa rotina parecia aumentar a consciência do nosso destino. E por falar em destino, porque não tratar do assunto? Melhor ignorar o fim ou minimamente se preparar para ele? Sim, precisamos nos preparar…. e a melhor forma de fazer isso é viver bem os dias que a gente tem!
Neste sentido, Boechat, sem querer, deixa uma grande lição. Ele se dedicou intensamente à profissão que amava, expos opiniões, comprou brigas, chorou, dividiu com o público o drama da depressão, passou aperto financeiro, conheceu a desonra e a glória. A maior fama veio já na maturidade, depois dos 50, provando que podemos nos reinventar a qualquer tempo. E já com vida feita, curtiu novamente a aventura de criar filhos. Sempre falava de suas mulheres – a esposa e as duas filhas pequenas ( tinha mais 4 filhos adultos). Aliás, ele se referia à esposa como “doce Veruska”- uma referência típica de quem está satisfeito com o que conquistou. Se preparar para a morte é acima de tudo não esperar condições ideais para viver intensamente. É não desistir com os dissabores, mas sair da crise fortalecido. Ouvi alguém dizendo que Boechat era como vinho- a cada ano ficava melhor. Um dia antes de morrer, ele reuniu toda a família para um almoço de domingo. Coisas do destino, mas se ele pudesse escolher o que fazer, em seu último dia de vida, certamente seria estar ao lado dos seus. É isso que faz a vida ter sentido e ele o fez com muita coragem.
O jornalismo perde muito. O jornalista Ricardo Boechat nunca foi unanimidade, mas “deu a cara pra bater” porque não era dado à mornidão. Tinha suas convicções e por isso se destacou em meio a tantas vozes e a todas as transformações que atingiram a imprensa nos últimos anos. Fez seu nome na mídia impressa, marcou presença na televisão e finalmente revolucionou a notícia no radio. Viver intensamente é isso – desbravar, arriscar, expor o que se pensa, construir argumentos, brigar, defender, discordar. O nosso problema é a resignação. Nos adaptamos aos relacionamentos tóxicos, ao trabalho frustrante, à rotina doentia, à falta de cuidado com a saúde (como se a velhice não fosse chegar), nos acostumamos a esperar a condição ideal para todo passo que precisamos dar. De repente olhamos nossas rugas aos 50 e perguntamos: o que eu fiz comigo?
Acredito que Boechat poderia responder a essa pergunta com tranquilidade. Talvez poderia ter trabalhado menos, mas ninguém é perfeito. A nós que ficamos aqui, lamentando mais essa perda, e aos meus conterrâneos, que já devem ter perdido mais vizinhos desde que voltei do interior, fica a reflexão: o que eu tenho feito de mim? Como me preparar para que meu último dia encerre uma passagem que valeu a pena a mim e a outros a meu redor ?
Mira Graçano
Jornalista/ Coach de Comunicação